Livro O Sítio do Pica-Pau Amarelo
Capitulo:
Só depois de comer o peixe frito é que Narizinho se lembrou da pobre
boneca, encharcada pelo banho no rio.
— A coitada!... É bem capaz de apanhar pneumonia...
E foi correndo cuidar dela. Despiu-a e pô-la num lugar de bastante sol. Dum
lado estendeu suas roupinhas molhadas e do outro, a pobre Emília nua em pêlo. E já
ia retirar-se quando a boneca fez cara de choro.
— Eu aqui não fico sozinha!...
— Por que, sua enjoada? Tem medo que o leitão venha espiar esses cambitos
magros?
— Espiar não é nada, mas ele é capaz de me comer. Tia Nastácia diz que
Rabicó devora tudo o que encontra.
— Nesse caso, penduro você na árvore.
— Isso também não! — protestou Emília. — Alguma vespa pode me ferrar.
— Boba! Não sabe que vespa não ferra pano?
— Mas se eu cair com o vento?
— Grande coisa! Boneca de pano quando cai não se machuca. Eu é que não
posso ficar neste sol tirano à espera de que a excelentíssima senhora condessa de
Três Estrelinhas seque! Quem mandou molhar-se?
— Mal agradecida! Se não fosse a minha molhadela você não comia a traíra.
— Está pensando que era uma grande coisa a tal traíra? Só espinho... — É, mas você comeu-a com espinho e tudo. e até lambeu os beiços.
— Lábios, aliás. Beiço é de boi. Comi porque quis, sabe? Não tenho que dar
satisfações a ninguém, ahn! — e Narizinho pôs-lhe a língua.
Emburraram ambas. Narizinho, porém, ficou, porque lá no íntimo estava com
receio de deixar a boneca sozinha.
Fazia um sol quente e parado. Nas árvores, um ou outro tico-tico só; e no
chão, só formiguinhas ruivas.
Para matar o tempo a menina pôs-se a observar o corre-corre delas,
esquecendo a briga com a boneca.
— Já reparou, Emília, como as formigas conversam? Que pena a gente não
entender o que dizem...
— A gente é modo de dizer — replicou Emília — porque eu entendo muito
bem o que dizem.
— Sério, Emília?
— Sério, sim, Narizinho. Entendo muito bem e, se você ficar aqui comigo,
contarei todas as historinhas que elas conversam. Repare. Vem vindo aquela de lá e
esta de cá. Assim que se encontrarem, vão parar e conversar.
Dito e feito. As formiguinhas encontraram-se, pararam e começaram a trocar
sinais de entendimento.
— Fiquei na mesma! — disse a menina.
— Pois eu entendi tudo, — declarou a boneca. -A que veio de lá disse:
“Encontrou o cadáver do grilinho verde”? A que veio de cá respondeu: “Não”! A de
lá: “Pois volte e procure perto daquela pedra onde mora o besouro manco.” Esta
formiga que dá ordens deve ser alguma dona-de-casa lá do formigueiro. E repare
seus modos de mandona; está sempre a entrar e sair do buraquinho, como quem
dirige um serviço. A outra com certeza é uma simples carregadeira.
Havia de ser isso mesmo, porque logo depois chegou uma terceira, muito
apressada, que cochichou com a mandona e lá se foi mais apressada ainda.
— Que é que disse esta? — perguntou Narizinho.
— Disse que haviam descoberto uma bela minhoca perto da porteira, mas que
precisavam de ajutório para conduzi-la.
— Emília, você esta me bobeando! — exclamou a menina desconfiada. —
Vou ver, e se não for verdade você me paga. Espere aí...
E disparou em direção da porteira. Procura que procura, logo achou em certo
ponto uma pobre minhoca corcoveando com várias formiguinhas ferradas no seu
lombo.
Teve vontade de libertar a prisioneira, mas a curiosidade de ver o que
aconteceria foi maior — e deixou a triste minhoca entregue ao seu trágico destino.
Novas formiguinhas foram chegando, que de um bote — zás!... ferravam a
minhoca sem dó. Não demorou muito e já eram mais de vinte. A minhoca bem que
espinoteou; por fim, exausta, foi moleando o corpo até que morreu bem morrida. As
formiguinhas então principiaram a arrastá-la para o formigueiro.
Que custo! A minhoca era das mais gordas, pesando umas sete arrobas —
arrobinhas de formiga, e além disso ia enganchando pelo caminho em quanto pedregulho ou capim havia; mas as carregadeiras sabiam dar volta a todos os
embaraços.
Depois de meia hora de trabalheira deram com a minhoca na boca do
formigueiro. Aí, nova atrapalhação. Por mais que experimentassem, não houve jeito
de recolhê-la inteira. Nisto apareceu a formiga mandona. Examinou o caso e deu
ordem para que a picassem em vários roletes.
Aquilo foi zás-trás! Em três tempos fez-se o serviço e os roletes de carne
foram levados para dentro.
— Sim, senhora! — exclamou a menina depois de terminada a festa. — É o
que se pode chamar um trabalho limpo! O demo queira ser minhoca neste pomar...
— Bem feito! — disse Emília. — Quem a mandou ser abelhuda?
Se estivesse com as outras lá dentro da terra, que é o lugar das minhocas,
nada lhe aconteceria. Macaco que muito mexe quer chumbo, como diz tia Nastácia.
Isso, foi de dia. De noite a história das formigas continuou.
Narizinho e Emília dormiam juntas na mesma cama. A rede armada entre pés
de cadeira fora abandonada desde que a boneca aprendeu a falar. Dormiam juntas
para conversar até que o sono viesse.
— Mas, Emília, como é que você entende a linguagem das formigas? —
perguntou Narizinho logo que se deitou.
A boneca refletiu um bocado e respondeu:
— Entendo porque sou de pano.
Narizinho deu uma gargalhada.
— Isso não é resposta duma senhora inteligente. O meu vestido também é de
pano e não entende coisa nenhuma.
A boneca pensou outra vez.
— Então é porque sou de macela — disse.
Nova risada de Narizinho.
— Isso Também não é resposta. Este travesseiro é de macela e entende as
formigas tanto quanto eu.
— Então... então... engasgou Emília, com o dedinho na testa. Então não sei.
Era a primeira vez que Emília se embaraçava numa resposta. Primeira e
última. Nunca mais houve pergunta que a atrapalhasse.
— Pois se não sabe, durma — disse a menina, virando-se para a parede.
Dormiram ambas.
Altas horas, estavam no mais gostoso do sono quando bateram — toc, toc,
toc...
— Quem é? — perguntou Narizinho sentando-se na cama.
— Sou eu, Rabicó! — grunhiu o leitão entreabrindo a porta com o focinho.
— Está aqui uma senhora ruiva que quer entrar.
— Pois que entre! — ordenou a menina. Rabicó escancarou a porta para dar
passagem a uma formiga ruiva, de saiote vermelho e avental de renda. Trazia na
cabeça uma salva de prata, coberta com guardanapo de papel.
— Que é que deseja? — indagou a menina cheia de curiosidade. — Quero entregar à senhora Condessa este presente mandado pela rainha das
formigas.
— Condessa? — repetiu Narizinho franzindo a testa. – Que condessa, minha
senhora?
— Condessa de Três Estrelinhas — explicou a formiga.
— Hum! — fez a menina, lembrando-se de que ela mesma havia
“condessado” a boneca.
Voltou-se para Emília e deu-lhe uma cotovelada.
— Acorde, pedra! É com Vossa Excelência o negócio.
Emília sentou-se na cama. Espreguiçou-se, tonta de sono. E julgando que
ainda estivessem a conversar sobre a linguagem das formigas, disse, num bocejo:
— Então é... é porque sou...
— Não se trata mais disso, idiota! Está aí à procura duma tal condessa a
criada duma tal rainha. Vamos! Acorde duma vez!
Só então Emília acordou de verdade. Viu a formiga com a salva e espichou os
braços para receber o presente. Eram croquetes, lindos croquetes tostadinhos.
A boneca sorriu de gosto e orgulho. A rainha só se lembrara dela!
— Diga a Sua Majestade que a condessa de Três Estrelinhas muito agradece
o presente. Diga que os croquetes estão lindos e que ela é uma grande cozinheira.
Narizinho disparou a rir gostosamente.
— Que idéia, condessa! Uma rainha lá pode ser cozinheira?
Caindo em si, Emília viu que tinha cometido uma coisa muito grave entre as
pessoas de alta sociedade, chamada “gafe”. E procurou corrigir-se.
— Isto é... diga que a cozinheira dela é muito boa, entendeu? E diga também
que os croquetes estão muito gostosos, isto é... devem estar muito gostosos. Pode ir.
A criada fez um cumprimento de cabeça antes de retirar-se, mas foi detida por
um gesto da menina.
— Não vá ainda — disse ela. E voltando-se para a Emília: — Presente,
senhora condessa, paga-se com presente. Mande à tal rainha uma perna daquele
pernilongo que queimei com a vela antes de deitar.
— É verdade! — exclamou a boneca. — Não me custa nada e ela vai ficar
contentíssima.
E pôs-se de gatinhas a procurar o pernilongo assado. Achou-o, tirou-lhe uma
perninha, enfeitou-a com um laço de fita e, depois de embrulhá-la em papel de seda,
colocou-a na salva, com um cartão que dizia assim:
“À Sua Majestade a Rainha da Cintura Fina, a humilde criada Condessa de
Três Estrelinhas oferece este humilde presente.”
— Leve este presente à rainha, sim? E você, para distrair-se pelo caminho vá
comendo este mocotó de pernilongo – concluiu Emília, dando à criada um cambito
de inseto.
A mensageira agradeceu, retirando-se muito satisfeita da vida, com a salva na
cabeça e o mocotó no ferrão.
Emília fechou a porta e veio examinar os croquetes. Cheirou-os.
— Hum! Estão de fazer vir água à boca. Quer provar um, Narizinho? A menina torceu o nariz desdenhosamente.
— Deus me livre! Juro que é croquete de minhoca.
Percebendo que ela falava assim por despeito, a boneca disse, para moê-la:
— Quem desdenha quer comprar...
— Só? Engraçadinha!... replicou a menina com um grande ar de pouco caso.
E vendo a boneca morder um dos croquetes, com os maiores exageros do mundo,
como se aquilo fosse um manjar do céu, fez muxoxo de nojo.
— Está boa mesmo para casar com Rabicó! Comer croquete de minhoca!
— Que seja de minhoca, que tem isso? — retrucou Emília. Tanto faz carne de
minhoca como de porco, vaca ou frango — tudo é carne. E muito me admira que
uma senhora que comeu ontem no jantar tripa de porco, mostre essa cara de nojo por
causa dum simples croquete de minhoca.
— Alto lá, senhora condessa Minhoqueira! Porco é porco e minhoca é
minhoca.
— É “por isso mesmo” que eu como minhoca e não como porco! — replicou
a boneca vitoriosa. — Não sou porcalhona.
A discussão foi por aí além. Enquanto isso o senhor Rabicó farejou os
croquetes, chegou-se de mansinho e, vendo-as distraídas com a disputa, comeu-os
todos de uma engolida só. Terminada a discussão, quando a boneca, espichou o
braço a fim de pegar um segundo croquete...
— Que é dos croquetes? — gritou ela.
Nem sinal! Emília esperneou de ódio, ao passo que Narizinho batia palmas de
contentamento.
— Bem feito! Estava muito ganjenta, não é? Pois tome! — Quero os meus croquetes! Quero os meus croquetes! — berrava Emília,
batendo o pé num grande desespero.
— Se quer os seus croquetes, peça contas a quem os tirou.
— Quem foi?
— Quem mais se não Rabicó? Vai ver que está aqui pelo quarto, escondido
debaixo da cama.
Emília deu busca e logo descobriu o ladrão num canto, ressonando de papo
cheio.
— Espere que te curo! — gritou ela, passando a mão na vassoura. E pá! pá!
pá!... desceu a lenha no lombo do gatuno, enquanto Narizinho se rebolava na cama
de tanto rir, pensando consigo: “Se antes de casar é assim, imagine-se depois!”
Isso porque ela andava alimentando o projeto de casar Emília com Rabicó.
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