sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Biblioteca do Visconde

Livro O Sítio do Pica-Pau Amarelo







Capitulo:








Só depois de comer o peixe frito é que Narizinho se lembrou da pobre 
boneca, encharcada pelo banho no rio. 
— A coitada!... É bem capaz de apanhar pneumonia... 
E foi correndo cuidar dela. Despiu-a e pô-la num lugar de bastante sol. Dum 
lado estendeu suas roupinhas molhadas e do outro, a pobre Emília nua em pêlo. E já 
ia retirar-se quando a boneca fez cara de choro. 
— Eu aqui não fico sozinha!... 
— Por que, sua enjoada? Tem medo que o leitão venha espiar esses cambitos 
magros? 
— Espiar não é nada, mas ele é capaz  de me comer. Tia Nastácia diz que 
Rabicó devora tudo o que encontra. 
— Nesse caso, penduro você na árvore. 
— Isso também não! — protestou Emília. — Alguma vespa pode me ferrar. 
— Boba! Não sabe que vespa não ferra pano? 
— Mas se eu cair com o vento? 
— Grande coisa! Boneca de pano quando cai não se machuca. Eu é que não 
posso ficar neste sol tirano à  espera de que a excelentíssima senhora condessa de 
Três Estrelinhas seque! Quem mandou molhar-se? 
— Mal agradecida! Se não fosse a minha molhadela você não comia a traíra. 
— Está pensando que era uma grande coisa a tal traíra? Só espinho... — É, mas você comeu-a com espinho e tudo. e até lambeu os beiços. 
— Lábios, aliás. Beiço é de boi. Comi porque quis, sabe? Não tenho que dar 
satisfações a ninguém, ahn! — e Narizinho pôs-lhe a língua. 
Emburraram ambas. Narizinho, porém, ficou, porque lá no íntimo estava com 
receio de deixar a boneca sozinha. 
Fazia um sol quente e parado. Nas árvores, um ou outro tico-tico só; e no 
chão, só formiguinhas ruivas. 
Para matar o tempo a menina pôs-se a observar o corre-corre delas, 
esquecendo a briga com a boneca. 
— Já reparou, Emília, como as formigas conversam? Que pena a gente não 
entender o que dizem... 
— A gente é modo de dizer — replicou Emília — porque eu entendo muito 
bem o que dizem. 
— Sério, Emília? 
— Sério, sim, Narizinho. Entendo muito bem e, se você ficar aqui comigo, 
contarei todas as historinhas que elas conversam. Repare. Vem vindo aquela de lá e 
esta de cá. Assim que se encontrarem, vão parar e conversar. 
Dito e feito. As formiguinhas encontraram-se, pararam e começaram a trocar 
sinais de entendimento. 
— Fiquei na mesma! — disse a menina. 
— Pois eu entendi tudo,  — declarou a boneca. -A  que veio de lá disse: 
“Encontrou o cadáver do grilinho verde”? A que veio de cá respondeu: “Não”! A de 
lá: “Pois volte e procure perto daquela pedra onde mora o besouro manco.” Esta 
formiga que dá ordens deve  ser alguma dona-de-casa lá  do formigueiro. E repare 
seus modos de mandona; está sempre a entrar e sair  do buraquinho, como quem 
dirige um serviço. A outra com certeza é uma simples carregadeira. 
Havia de ser isso mesmo, porque logo depois chegou uma terceira, muito 
apressada, que cochichou com a mandona e lá se foi mais apressada ainda. 
— Que é que disse esta? — perguntou Narizinho. 
— Disse que haviam descoberto uma bela minhoca perto da porteira, mas que 
precisavam de ajutório para conduzi-la. 
— Emília, você esta me bobeando! — exclamou a menina desconfiada. — 
Vou ver, e se não for verdade você me paga. Espere aí... 
E disparou em direção da porteira. Procura que procura, logo achou em certo 
ponto uma pobre minhoca  corcoveando com várias formiguinhas ferradas no seu 
lombo. 
Teve vontade de libertar a prisioneira, mas a curiosidade de ver o que 
aconteceria foi maior — e deixou a triste minhoca entregue ao seu trágico destino. 
Novas formiguinhas foram chegando,  que de um bote — zás!... ferravam a 
minhoca sem dó. Não demorou muito e já eram mais de vinte. A minhoca bem que 
espinoteou; por fim, exausta, foi moleando o corpo até que morreu bem morrida. As 
formiguinhas então principiaram a arrastá-la para o formigueiro. 
Que custo! A minhoca era das mais gordas, pesando umas sete arrobas — 
arrobinhas de formiga, e além disso ia enganchando  pelo caminho em quanto pedregulho ou capim havia; mas as carregadeiras sabiam dar volta a todos os 
embaraços. 
Depois de meia hora de trabalheira deram com a minhoca na boca do 
formigueiro. Aí, nova atrapalhação. Por mais que experimentassem, não houve jeito 
de recolhê-la inteira. Nisto apareceu  a formiga mandona. Examinou o caso e deu 
ordem para que a picassem em vários roletes. 
Aquilo foi zás-trás! Em três tempos fez-se o serviço e os roletes de carne 
foram levados para dentro. 
— Sim, senhora! — exclamou a menina depois de terminada a festa. — É o 
que se pode chamar um trabalho limpo! O demo queira ser minhoca neste pomar... 
— Bem feito! — disse Emília. — Quem a mandou ser abelhuda? 
Se estivesse com as outras lá dentro da terra, que é o  lugar das minhocas, 
nada lhe aconteceria. Macaco que muito mexe quer chumbo, como diz tia Nastácia. 
Isso, foi de dia. De noite a história das formigas continuou. 
Narizinho e Emília dormiam juntas na mesma cama. A rede armada entre pés 
de cadeira fora abandonada desde que a  boneca aprendeu a falar. Dormiam juntas 
para conversar até que o sono viesse. 
— Mas, Emília, como é que você entende a linguagem das formigas? — 
perguntou Narizinho logo que se deitou. 
A boneca refletiu um bocado e respondeu: 
— Entendo porque sou de pano.  
Narizinho deu uma gargalhada. 
— Isso não é resposta duma senhora inteligente. O meu vestido também é de 
pano e não entende coisa nenhuma. 
A boneca pensou outra vez. 
— Então é porque sou de macela — disse.  
Nova risada de Narizinho.  
— Isso Também não é resposta. Este travesseiro é de macela e entende as 
formigas tanto quanto eu. 
— Então... então... engasgou Emília, com o dedinho na testa. Então não sei. 
Era a primeira vez que  Emília se embaraçava numa resposta. Primeira e 
última. Nunca mais houve pergunta que a atrapalhasse. 
— Pois se não sabe, durma — disse a menina, virando-se para a parede. 
Dormiram ambas. 
Altas horas, estavam no mais gostoso  do sono quando bateram — toc, toc, 
toc... 
— Quem é? — perguntou Narizinho sentando-se na cama. 
— Sou eu, Rabicó! — grunhiu o leitão entreabrindo a porta com o focinho. 
— Está aqui uma senhora ruiva que quer entrar. 
— Pois que entre! — ordenou a menina. Rabicó escancarou a porta para dar 
passagem a uma formiga ruiva, de saiote  vermelho e avental de renda. Trazia na 
cabeça uma salva de prata, coberta com guardanapo de papel. 
— Que é que deseja? — indagou a menina cheia de curiosidade. — Quero entregar à senhora Condessa este presente mandado pela rainha das 
formigas. 
— Condessa? — repetiu Narizinho franzindo a testa. – Que condessa, minha 
senhora? 
— Condessa de Três Estrelinhas — explicou a formiga. 
— Hum! — fez a menina, lembrando-se de que ela mesma havia 
“condessado” a boneca. 
Voltou-se para Emília e deu-lhe uma cotovelada. 
— Acorde, pedra! É com Vossa Excelência o negócio. 
Emília sentou-se na cama. Espreguiçou-se, tonta de sono. E julgando que 
ainda estivessem a conversar sobre a linguagem das formigas, disse, num bocejo: 
— Então é... é porque sou... 
— Não se trata mais disso, idiota!  Está aí à procura duma tal condessa a 
criada duma tal rainha. Vamos! Acorde duma vez! 
Só então Emília acordou de verdade. Viu a formiga com a salva e espichou os 
braços para receber o presente. Eram croquetes, lindos croquetes tostadinhos. 
A boneca sorriu de gosto e orgulho. A rainha só se lembrara dela! 
— Diga a Sua Majestade que a condessa de Três Estrelinhas muito agradece 
o presente. Diga que os croquetes estão lindos e que ela é uma grande cozinheira. 
Narizinho disparou a rir gostosamente. 
— Que idéia, condessa! Uma rainha lá pode ser cozinheira? 
Caindo em si, Emília viu que tinha cometido uma coisa muito grave entre as 
pessoas de alta sociedade, chamada “gafe”. E procurou corrigir-se. 
— Isto é... diga que a cozinheira dela é muito boa, entendeu? E diga também 
que os croquetes estão muito gostosos, isto é... devem estar muito gostosos. Pode ir. 
A criada fez um cumprimento de cabeça antes de retirar-se, mas foi detida por 
um gesto da menina. 
— Não vá ainda — disse ela. E voltando-se para a Emília: — Presente, 
senhora condessa, paga-se com presente.  Mande à tal rainha  uma perna daquele 
pernilongo que queimei com a vela antes de deitar. 
— É verdade! — exclamou a boneca. — Não me custa nada e ela vai ficar 
contentíssima. 
E pôs-se de gatinhas a procurar o pernilongo assado. Achou-o, tirou-lhe uma 
perninha, enfeitou-a com um laço de fita e, depois de embrulhá-la em papel de seda, 
colocou-a na salva, com um cartão que dizia assim: 
“À Sua Majestade a Rainha da Cintura Fina, a humilde criada Condessa de 
Três Estrelinhas oferece este humilde presente.” 
— Leve este presente à rainha, sim? E você, para distrair-se pelo caminho vá 
comendo este mocotó de pernilongo – concluiu Emília, dando à criada um cambito 
de inseto. 
A mensageira agradeceu, retirando-se muito satisfeita da vida, com a salva na 
cabeça e o mocotó no ferrão. 
Emília fechou a porta e veio examinar os croquetes. Cheirou-os. 
— Hum! Estão de fazer vir água à boca. Quer provar um, Narizinho? A menina torceu o nariz desdenhosamente. 
— Deus me livre! Juro que é croquete de minhoca.  
Percebendo que ela falava assim por despeito, a boneca disse, para moê-la: 
— Quem desdenha quer comprar... 
— Só? Engraçadinha!... replicou a menina com um grande ar de pouco caso. 
E vendo a boneca morder um  dos croquetes, com os maiores exageros do mundo, 
como se aquilo fosse um manjar do céu, fez muxoxo de nojo. 
— Está boa mesmo para casar com Rabicó! Comer croquete de minhoca! 
— Que seja de minhoca, que tem isso? — retrucou Emília. Tanto faz carne de 
minhoca como de porco, vaca ou frango — tudo é carne. E muito me admira que 
uma senhora que comeu ontem no jantar tripa de porco, mostre essa cara de nojo por 
causa dum simples croquete de minhoca. 
— Alto lá, senhora condessa Minhoqueira! Porco é porco e minhoca é 
minhoca. 
— É “por isso mesmo” que eu como minhoca e não como porco! — replicou 
a boneca vitoriosa. — Não sou porcalhona. 
A discussão foi por aí além. Enquanto isso o senhor Rabicó farejou os 
croquetes, chegou-se de mansinho e, vendo-as distraídas com a disputa, comeu-os 
todos de uma engolida só. Terminada a  discussão, quando a  boneca, espichou o 
braço a fim de pegar um segundo croquete... 
— Que é dos croquetes? — gritou ela.  
Nem sinal! Emília esperneou de ódio, ao passo que Narizinho batia palmas de 
contentamento. 
— Bem feito! Estava muito ganjenta, não é? Pois tome! — Quero os meus croquetes! Quero os meus croquetes! — berrava Emília, 
batendo o pé num grande desespero. 
— Se quer os seus croquetes, peça contas a quem os tirou. 
— Quem foi? 
— Quem mais se não Rabicó? Vai ver que está aqui pelo quarto, escondido 
debaixo da cama. 
Emília deu busca e logo descobriu o ladrão num canto, ressonando de papo 
cheio. 
— Espere que te curo! — gritou ela, passando a mão na vassoura. E pá! pá! 
pá!... desceu a lenha no lombo do gatuno, enquanto Narizinho se rebolava na cama 
de tanto rir, pensando consigo: “Se antes de casar é assim, imagine-se depois!” 
Isso porque ela andava alimentando o projeto de casar Emília com Rabicó. 





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