terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Quadro- O Sítio do Pica-Pau Amarelo

Capitulo 1: As Jabuticabas

De volta do reino das Águas Claras, Narizinho começou todas as noites a
sonhar com o príncipe Escamado, dona Aranha, o doutor Caramujo e mais figurões
que conhecera por lá. Ficou de jeito que não podia ver o menor inseto sem que se
pusesse a imaginar a vida  maravilhosa que teria na terrinha dele. E quando não
pensava nisso pensava no Pequeno Polegar e nos meios de o fazer fugir de novo da
história onde o coitadinho vivia preso.
Era este o assunto predileto das conversas da menina com a boneca. Faziam
planos de toda sorte, cada qual mais amalucado.
Emília tinha idéias de verdadeira louca.
— Vou lá — dizia ela —  e agarro nas orelhas da dona Carocha e dou um
pontapé naquele nariz de papagaio e pego o Polegada pelas botas e venho correndo.
Narizinho ria-se, ria-se...
— Vai lá onde, Emília?
— Lá onde mora a velha.
— E onde mora a velha?
A boneca não sabia, mas não se atrapalhava na resposta. Emília nunca se
atrapalhou nas suas respostas. Dizia as maiores asneiras do mundo, mas respondia. — A velha mora com o Pequeno Polegada.
— Polegar, Emília!
— PO-LE-GA-DA.
Era teimosa como ela só. Nunca disse doutor Caramujo. Era sempre doutor
Cara de Coruja. E nunca quis dizer Polegar. Era sempre Polegada.
— Muito bem — concordou a menina. — A velha mora com Polegar e
Polegar mora com a velha. Mas onde moram os dois?
— Moram juntos.
Narizinho ria-se, dizendo: “Possa-se com uma diabinha destas!”
Dona Benta era outra que achava muita graça nas maluquices da boneca.
Todas as noites punha-a ao colo para lhe contar  histórias. Porque não havia no
mundo quem gostasse mais de história do que a boneca. Vivia pedindo que lhe
contassem a história de tudo – do tapete, do cuco, do armário. Quando soube que
Pedrinho, o outro neto de dona Benta, estava para vir passar uns tempos no sítio,
pediu a história de Pedrinho.
— Pedrinho não tem história — respondeu dona Benta  rindo-se. — É um
menino de dez anos que nunca saiu da casa de minha filha Antonica e portanto nada
fez ainda e nada conhece do mundo. Como há de ter história?
— Essa é boa! — replicou a boneca. — Aquele livro de capa vermelha da sua
estante também nunca saiu de casa e no entanto tem mais de dez histórias dentro.
Dona Benta voltou-se para tia Nastácia.
— Esta Emília diz tanta asneira que é quase impossível conversar com ela.
Chega a atrapalhar a gente.
— É porque é de pano,  sinhá — explicou a preta — e dum paninho muito
ordinário. Se eu imaginasse que ela ia aprender a falar, eu tinha feito ela de seda, ou
pelo menos dum retalho daquele seu vestido de ir à missa.
Dona Benta olhou para tia Nastácia dum certo modo, como que achando
aquela explicação muito parecida com as da Emília...
Nisto apareceu Narizinho, com uma carta para dona Benta trazida pelo
correio.
— Letra da sua filha Tonica, vovó — disse a menina. – Com certeza é
marcando a viagem de Pedrinho.
Dona Benta leu. Era isso mesmo. Pedrinho viria dali uma semana.
— Uma semana ainda? — comentou Narizinho, desanimada de tanta demora.
Que pena! Tenho tanta coisa a contar  a Pedrinho — coisas do reino das Águas
Claras...
— Não sei que reino é esse. Você nunca me falou nele, — disse dona Benta
com cara de surpresa.
— Não falei nem falo porque a senhora  não acredita. uma beleza de reino,
vovó! Um palácio de coral que parece um sonho! E o príncipe Escamado, e o doutor
Caramujo, e dona Aranha com suas seis filhinhas, e o major Agarra, e o papagaio
que salvei da morte — quanta coisa!... Até baleias vimos lá, uma baleia enorme,
dando de mamar a três baleinhas. Vi um milhão de coisas mas não posso contar nada
nem para vovó nem para tia Nastácia porque não acreditam. Para Pedrinho, sim, posso contar tudo, tudo...
Dona Benta, de fato, nunca dera crédito às histórias maravilhosas de
Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de crianças.” Mas depois que a menina
fez a boneca falar, dona Benta ficou tão impressionada que disse para a boa negra:
— Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo que  as outras coisas
fantásticas que Narizinho nos contou não são simples sonhos, como sempre pensei.
— Eu também acho, sinhá. Essa menina é levada da breca. É bem capaz de
ter encontrado por aí alguma varinha de condão que alguma fada tenha perdido... Eu
também não acreditava no que ela dizia, mas depois do caso da boneca fiquei até
transtornada da cabeça. Pois onde é que já se viu uma coisa assim, sinhá, uma
boneca de pano, que eu mesma fiz com estas pobres mãos, e de um paninho tão
ordinário, falando, sinhá, falando que  nem uma gente!... Qual, ou nós estamos
caducando ou o mundo está perdido...
E as duas velhas olhavam uma para a  outra, sacudindo a cabeça. Narizinho
não gostava de esperar; ficou pois aborrecida de ter de esperar Pedrinho ainda uma
semana inteira. Felizmente era tempo de jabuticabas.
No sítio de dona Benta havia vários pés, mas bastava um para que todos se
regalassem até enjoar. Justamente naquela semana as jabuticabas tinham chegado
“no ponto” e a menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Volta e meia
trepava à árvore, que nem uma macaquinha.  Escolhia as mais bonitas, punha-as
entre os dentes e tloc! E depois do tloc, uma engolidinha de caldo e pluf! – caroço
fora. E tloc, pluf, tloc, pluf, lá passava o dia inteiro na árvore.
As jabuticabas tinham outros fregueses além da menina. Um deles era um
leitão muito guloso, que recebera o nome de Rabicó.
Assim que via Narizinho trepar à árvore, Rabicó vinha  correndo postar-se
embaixo à espera dos caroços. Cada vez que soava lá em cima um tloc! seguido de
um pluf! ouvia-se cá embaixo um nhoc! do leitão abocanhando qualquer coisa. E a
música da jabuticabeira era assim: tloc! pluf! nhoc! — tloc! pluf! nhoc!...
Sanhaços também, e abelhas e vespas. Vespas em quantidade, sobretudo no
fim, quando as jabuticabas ficavam que nem um mel, como dizia Narizinho.
Escolhiam as melhores frutas, furavam-nas com o ferrão, enfiavam meio corpo
dentro e deixavam-se ficar muito quietinhas, sugando até caírem de bêbedas.
— E não mordiam?
— Não tinham tempo. O tempo era pouco para aproveitarem aquela gostosura
que só durava uns quinze dias.
Não mordiam é um modo de dizer. Nunca tinham mordido, isso sim. Porque
justamente naquela tarde uma mordeu. Estava Narizinho no seu galho, distraída em
pensar na surpresa que teria o príncipe Escamado se recebesse uma jabuticaba de
presente, quando levou à boca uma das tais furadinhas, com meia vespa dentro.
Dessa vez em lugar do tloc do costume o que soou foi um berro — ai! ai! ai!... tão
bem berrado que lá dentro da casa as duas velhas ouviram.
— Que será aquilo? — exclamou dona Benta assustada. — Aposto que é vespa, sinhá! — disse tia Nastácia. — Ela não sai da
“fruteira” e, como nunca foi mordida, abusa. Eu vivo dizendo: “Cuidado com as
vespas!” mas não adianta, Narizinho não faz caso. Agora, está aí...
E foi correndo ao pomar acudir a menina.
Encontrou-a já de volta, berrando com a língua à mostra, porque fora bem na
ponta da língua que a vespa ferroara. A negra trouxe-a para casa, botou-a no colo e
disse:
— Sossegue, boba, isso não é nada. Dói mas passa. Ponha a língua para eu
arrancar o ferrão. Vespa quando morde deixa o ferrão no lugar da mordedura. Bem
para fora. Assim.
Narizinho espichou meio palmo de língua e tia Nastácia, com muito custo,
porque já tinha a vista fraca, pôde afinal descobrir o ferrãozinho e arrancá-lo.
— Pronto! — exclamou mostrando qualquer coisa na ponta duma pinça. —
Está aqui o malvado. Agora é ter paciência e esperar que a dor passe. Se fosse
mordida de cachorro bravo seria muito pior...
Narizinho curtiu a dor por alguns  minutos, de língua inchada e olhos
vermelhos, soluçando de vez em vez. Depois que a dor passou, foi contar à boneca
toda a história.
— Bem feito! — disse Emília. — Se fosse eu, antes de comer olhava cada
fruta, uma por uma, com o binóculo de dona Benta.
Apesar do acontecido, Narizinho não pôde reprimir uma gargalhada, que tia
Nastácia ouviu lá da cozinha.
“Narizinho já sarou”, disse consigo a preta, “e daqui um instantinho está
trepada na árvore outra vez”.
E tinha razão. Indo dali a pouco ao rio com a trouxa de roupa suja, ao passar
pela jabuticabeira parou para ouvir a música de sempre —  tloc!  pluf!  nhoc... Lá
estava Narizinho trepada à árvore.
Lá estavam as vespas com meio corpo metido dentro das frutas. Lá estava
Rabicó esperando a queda dos caroços.
— Está tudo regulando! — murmurou consigo a preta, e pondo o pito na boca
seguiu o seu caminho.

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